terça-feira, 29 de junho de 2010

- Sabe, às vezes eu acho que estou sonhando. - Por quê? - Porque quando eu abro os olhos vejo você.
Os meus olhos estavam esbugalhados atentos a todas as paisagens que as curvas, as subidas e as descidas revelavam. Se fosse possível, eu ficaria horas sem piscar, só para não perder um minuto daquilo tudo. O cheiro do eucalipto, as cores das flores, tudo devidamente maravilhoso. Minha vontade mesmo era parar e descer ali, roçar a beirinha da saia na terra, escancarar os dedões dos pés no chão, rolar na grama. Sentir de perto só um pouquinho da liberdade material. Ah, quem dera! Eu pude sentir a paz que andava procurando há tempos quando passamos por dentro de um túnel de árvores de todos os tipos, altas, pequenas, claras, escuras, finas, grossas. Era um sonho. Os raios de sol que rasgavam e penetravam as folhas e iluminavam minha pele mais me aqueciam e arrepiavam ao mesmo tempo. Como alguém pode não acreditar em Deus? Nós éramos os intrusos. A natureza estava lá em sua perfeição. Não, não tem como! É perfeito demais para isso tudo nascer de uma explosão. O vento... Não precisei sequer vê-lo, joguei a mão para fora, fechei os olhos e o senti. Eu dormi por horas e percebi que era imensamente óbvio. Eu não preciso ver as coisas para acreditar nelas. Como tenho sorte.

Amor em caixinha

Esse negócio de sair pegando geral não é comigo. Já tentei, mas não deu. Eu prefiro estar sozinha. Mas bom mesmo é estar só com um. Alguém que me deixe doida, seja de ciúmes ou de paixão. Alguém que me faça sentir saudades se ficar um só dia sem falar comigo. Prefiro sofrer por alguém que valha a pena e morrer todos os dias, seja de amor ou de dor. É, eu gosto disso. Gosto de guardar todo o meu amor numa caixinha e dá-la de presente a alguém que me respeite e me entenda do jeito que eu sou. E é por isso que essa caixinha foi aberta mais uma vez. E lá vou eu me entregar por alguém que me faça viajar no pensamento e tire minhas noites de sono, que me diga que eu tenho olheiras e mesmo assim sou a mulher mais linda do mundo. Alguém que fale que só eu existo, que tem saudade de mim. Alguém que também guardou seu amor em uma caixinha... Por essas pessoas vale a pena se arriscar.

...

Você já se sentiu invisível e tão insignificante que chegou a pensar que nenhum ser ou mesmo a luz do sol poderiam sentir sua falta? As pessoas vão dormir e você ainda está acordado. Elas acordam e você continua dormindo. E não ter ânimo para absolutamente nada e se conformar com isso, ficando quieto e parado, assistindo os ponteiros girando sem poder segurá-los. Tentando entender quem é você ou o que você deveria ser e por que nada disso está dando certo. Sentir-se só na maior parte do tempo e ter de ouvir sua família dizendo que você deve sair e conhecer gente nova. E isso é mesmo uma droga, porque não sabe como se libertar dessa teia em que você mesmo fez questão de entrar e agora está preso. Quer saber? Até a aranha te deixou. Você sabe que está se matando cada vez mais, mas não quer conhecer pessoas novas porque as antigas ainda confundem muito o seu coração. Você tem que parar com isso, é sério! Pare de se matar e vá procurar alguém que se importe com você.

Zombie

Antigamente eu evitava com todas as minhas forças ir pra escola, porque eu achava que era boa demais pra ter que estudar em uma classe de idiotas, e como se não bastasse, a maioria era burra, sim, burra. Eu tenho que admitir que ficar longe da escola tem me deixado mais idiota a cada dia. Eu, que conseguia entender Física Relativista só lendo, hoje não consigo mais me concentrar nem pra ler mangá. Bem, a prova disso, que estou ficando mais idiota, veio à tona ontem, quando tive um surto de "irmão velho". Vai ver que o espírito que ficava atiçando ele a fazer essas idiotices com minha irmã mais nova passou pra mim, já que ele não mora mais aqui. Na verdade, nada me atiçou, eu fiz mesmo porque quis, por isso digo que estou me aprimorando no âmbito da idiotice. A pobrezinha estava justamente aqui onde estou, em "meu quarto" - entre aspas porque não é bem um quarto e muito menos meu, mas como é o lugar onde durmo, vem a calhar a expressão meu quarto - usando o computador, provavelmente conversando com alguma paquerinha e eu decidi aprontar. Fui até o quarto dela - que também é meu, pois meu guarda roupa está lá - atrás de tinta e encontrei, além das minhas de tecido, dois tubos de tinta guache, um vermelho e um marrom. Fui até o banheiro e fiz uma maquiagem zumbilesca. E digo que ela deveria estar conversando com alguma paquerinha porque sequer notou o movimento todo que eu fiz. Para a maldade ser maior, mandei um link para ela com a foto de zumbi. E se fosse só um zumbi, não faria efeito. Tive que mandar a foto de um palhaço zumbi. Porque se existe alguma coisa pior do que cinco zumbis, essa coisa apenas é um palhaço zumbi. Sim, nós temos medo de palhaço. Uma vez fui no circo com dois amigos e na entrada pulou um palhaço na frente, eu "AHHHHH, UM PALHAÇO!". E o que eu esperaria ver ali? Hm, e eu já corri do Ronald McDonald também, o que me deixa mais idiota, se essa estiver sendo a minha intenção com esse texto. Mas voltando ao susto na minha irmãzinha. Mandei o link da foto e vim para a porta do quarto a espera de um grito, pois saberia a hora certa de atacar. E digo novamente que ela estava conversando com um paquerinha porque geralmente ela abre os links que eu mando em menos de três segundos e desta vez ela demorou tanto que deu tempo de eu voltar à sala, mandar o link novamente, chamar atenção e ainda mofar na porta do quarto novamente. Tudo bem, ela poderia estar assistindo um vídeo com a tela cheia, não importa. Ela demorou bastante. E o pior de tudo é que as tintas estavam fora da validade, pois é, tinta também sai da validade. Apesar de minha maquiagem não ter ficado lá essas coisas, eu realmente cheirava a zumbi naquele momento e aquilo coçava muito. E quando já estava me esquecendo do que estava fazendo sentada naquela porta, eu ouço um grito. Dois gritos! Barulho de cadeira arrastando. Abri a porta, apaguei a luz e comecei a fazer o que um zumbi faria ao ver um pedaço de carne humana não contaminada e fresca, vocês sabem como é. Voou uma almofada em minha direção, eu desviei, porque sou uma zumbi esperta. A baixinha pulou no meu pescoço pra me enforcar e eu ri, eu ri até perder as forças. Quando levantei só vi um controle remoto voando no meio do meu nariz. KO. Eu fui ao chão. E por um minuto eu agradeci por não termos uma arma em casa.

domingo, 6 de junho de 2010

Ziza

Ziza era uma negrinha toda pomposa, na formosura de seus quinze anos. Morava numa vila do Galo Branco desde que se entendia por gente. Era ajudadeira e bonitinha a garota, dessas que causam boa impressão e todo mundo gosta. Era precisar de alguém para olhar as crianças enquanto a senhora cuidava de fazer a feira ou passar um amontoado de roupa, Ziza estava lá antes que piscassem os olhos. E a negrinha sempre ganhava uns trocados, era com isso que tratava de pintar as unhas e comprar a maquiagem para as bochechas. Vez ou outra conseguia juntar o dinheiro miúdo e comprar umas sandálias novas, que não duravam muito tempo de tanto ela sambar. Sabe esses feriados que ninguém entende o porquê mas existem? Então, uma dona aproveitou para visitar a irmã que já não via há uns meses. As crianças da vila - e até eu - pensavam que o nome da velha era Donivone, quando na verdade era apenas Ivone, mais essa forma de tratamento às senhoras. Pois, bem, sei que a dona viajou e deixou a casa por quatro ou cinco dias. No segundo dia longe, uns moleques inventaram de tomar banho na caixa d'água da velha. Carlinhos não queria muito ir, mas, como os outros insistiram, ele acabou aceitando essa ideia desmiolada. Foram subindo pelos buraquinhos dos tijolos e não tiveram trabalho maior que esse, a tampa da caixa vivia escancarada, era só entrar e mergulhar na água repleta de musgo. Ziza ia subindo a rua com a renca de pirralhos que levava de um lado para o outro e viu os três se banhando na caixa. "Ziza, Ziza!" Ainda gritaram o nome da negrinha querendo acenar. Alguns dias depois Dona Ivone estava em casa novamente. E quando abriu a torneira aquela água suja desceu pelo cano e foi direto às suas vistas. "Mas que diabos?" pensou. E a menina, que conhecia a causa, deu logo com a língua nos dentes. Melhor assim, porque a velha deu jeito de cobrir a caixa no mesmo dia. Acho que os meninos não levaram nenhum puxão de orelha, porque, por mais que fosse carrancuda, a velha era muito calma. À noite o samba rolava e em umas dessas rodas Ziza conheceu Ricardo, um mocinho branco, magro, dois anos mais velho que ela. Ninguém sabe dizer exatamente como eles se conheceram, pode ter sido com uma conversa besta ou um escorregão entre um passo e outro, mas se posso te afirmar algo, é que se apaixonaram um pelo outro naquela noite. Ricardo começou a frequentar as rodas de samba, mas ninguém o via, pois, na verdade, saía antes para se encontrar com Ziza debaixo do pé de manga, que por coincidência é o mesmo lugar onde ele construiu um barraco e mora hoje. Os dois estavam passanedo por aquelas loucuras de amor que todos um dia já viveram ou têm vontade de viver. Estava perto de completar dezesseis anos quando a mãe descobriu a aventura da menina. Ela disse que não apoiava esse namoro porque Ziza era nova demais, mas lá no fundo ela não queria que a filha se envolvesse com alguém que tivesse a cor da pele diferente, essa intolerância racial. Ziza ficou triste, tão triste que no dia de seu aniversário pegou uma garrafa de álcool, jogou em seu corpo e ateou fogo. Uma forma de protesto, talvez, ou amargura. A coitada se arrependeu e gritou, gritou desesperadamente por ajuda. A mãe viu, correu e lhe jogou uma bacia de água. A negrinha parou de gritar, teve um choque anafilático, morreu. Ficou um cheiro de carne queimada no ar, um sentimento de culpa no coração da mãe, no coração de Ricardo. Ziza poderia ter namorado escondida da mãe, mas preferiu tirar a sua vida do que enganá-la. A sua mãe poderia ter aceitado o fato de sua filha ser feliz, mesmo que fosse com alguém de outra cor. Ricardo poderia ter se matado também, mas decidiu seguir a vida e acabou se casando com uma garota que também morava na vila, uma garota branca dessa vez.